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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Vales de lágrimas

Colaborador Roberto Rocha

Com profundo pesar lamentamos as perdas ocorridas na Região Serrana do Rio de Janeiro nesse início de 2011, especialmente as que afetaram os municípios de Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis. Centenas de pessoas perderam suas vidas e seus bens. A agricultura ficou prejudicada numa região tradicionalmente produtora de hortaliças, entre outras. Uma grande mobilização uniu os governos federal, estadual e municípial, como nunca se viu. Questões políticas a parte, a catástrofe merece um comentário de cunho ecológico que pode ajudar a compreender porque tais fatos ocorreram e vão continuar a acontecer.
Geologicamente falando, os vales são espaços entre montanhas ou morros no fundo dos quais costuma passar um rio, fruto de um processo erosivo lento. As águas podem levar muitos anos para cavar essas "calhas" - formando um leito principal, além dos espaços laterais - para as épocas de enchentes. Infelizmente essas "laterais" são ocupadas ilegalmente com edificações, as mais diversas. As pedras soltas nos fundos dos vales já são suficientes para indicar que elas não nasceram ali. Na verdade elas rolaram das encostas íngremes por força da gravidade e foram, naturalmente, se acomodar nas reentrâncias naturais, mais baixas. As trombas dágua ou cabeças dágua ocorrem de tempos em tempos, como fenômenos cíclicos, sempre que há uma coincidência de determinados condições atmosféricos. Alguns desses fenômenos podem não causar prejuízos significativos e nem chegam a chamar a atenção da sociedade, resumindo-se a eventos pontuais. No entanto, quando a quantidade de água é muito grande, envolvendo toda uma região, não há como deixar de percebê-los. Se uma cabeça dágua dessas levar mais que 50 anos para ocorrer, você - adulto de 40 ou jovem de 18 - nem notará o que já houve ali. Uma floresta notável – que em 50 anos pode cobrir a região devastada- nos dá a sensação de que o local é um verdadeiro paraíso. E realmente é, mas não para os humanos. É um espaço para árvores e bichos próprios dessas gargantas. Nós humanos, imediatistas que somos, não desejamos aceitar um espaço tão grande “desocupado”. Então, desconhecendo ou não acreditando que algo possa ocorrer ali - embora as características geológicas locais indiquem claramente esta possibilidade - nós construímos nossas moradias exatamente nesses espaços = aparentemente firmes = situados entre as rochas íngremes e a calha principal do rio. É como fazem nas cidades - que antes eram áreas rurais - onde as estradas são construídas ao londo das margens, desrespeitando as leis. Animados com as terras “disponíveis”, lá vamos nós construir nossos sonhos e investir nossas economias em edificações e bens, desconhecendo o perigo. As águas podem chegar a 100 km por hora levando tudo que encontrar pela frente. Não há muito o que fazer. Quem lembra do Vale do Itajaí? Faz muito tempo não é? A maioria das pessoas já esqueceu... Você lembra de mais algum?

Bairros inteiros podem desaparecer em poucas horas quando a natureza resolve “trabalhar” o fundo dos vales. Devemos culpar a natureza ou a nossa inobservância? Milhares de pessoas morrem de tempos em tempos por desafiarem a força das águas. Passado o evento, o que fazemos? Vamos - outra vez - “reconstruir” onde a natureza já sinalizou que aquele espaço é dela e somente dela. Não é sem motivo, que as encostas íngremes e as margens do rios são definidas como áreas de preservação permanentes. A legislação atual não permite que se construa junto às margens dos rios justamente por reconhecer que esse fenômenos ocorrem de tempos em tempos, evitando assim - responsavelmente - a morte de humanos, animais, plantas, microorganismos ou ainda, prejuízos com perdas de bens e serviços. Os fundos dos vales não deveriam ter aglomerações de pessoas. As atividades ali desenvolvidas deveriam ser rigorosamente controladas, por exemplo a extração natural a partir de espécies nativas. Mesmo que demorem 50 anos para acontecer de novo, muitas vidas serão poupadas. A questão é que não temos o hábito salutar de planejar para algumas décadas. Nosso modelo de planejamento cobre apenas alguns anos, com base nas "condições políticas e econômicas vigentes" mas - raramente - com base nas condições climáticas muito distantes. Os municípios organizam seus planos diretores levando em consideração tais eventos? Todos os municípios possuem um Plano Diretor que é explicado para a população? As escolas poderiam ensinar para as crianças – desde cedo – o que é um Plano Diretor de uma cidade. Os alunos de hoje estarão amanhã, também ocupando novos espaços. Eles sabem como fazer isso? O fato de existir somente a legislação já mostrou que não funciona a contento. Se somos obrigados a conhecer as leis de trânsito, por que negligenciamos as leis de ocupação do solo? É uma questão que afeta a todos, independentemente de sua crença, opção sexual, cor ou poder aquisitivo. O que falta? Será que esse assunto não é tão importante quanto parece?

Os vales devem ser locais sagrados, habitados em especial por seus legítimos moradores: flora, fauna e microorganismos. Os humanos precisam se organizar melhor para lidar com forças tão poderosas, investir mais em conhecimento das áreas, capacitar as comunidades que possam ser afetadas de alguma forma por esses eventos extremos.

Além das questões locais e regionais, não devemos esquecer que estamos também sujeitos às alterações climáticas que se situam a muitos quilômetros de distância, como é o caso do El Niño e La Niña. O aquecimento global é uma realidade e os oceanos estão sofrendo alterações significatisvas em todos os sentidos. Os ventos estão mais fortes. As nuvens formam verdadeiros reservatórios aéreos com milhões de toneladas de peso sobre as nossas cabeças. Será que podemos simular e prever tais situações?. Será que - considerando as experiências já vividas - poderemos proibir que novas construções sejam feitas em determinados locais críticos? A legislação deve ser mais severa ainda para evitar que sejam ocupadas as áres de preservação permanentes. Se aceitarmos tais irresponsabilidades - mesmo por ignorância de outrem - teremos que assumir o peso dos prejuízos resultantes. Ou vales não podem ser ocupados como se estivéssemos em áreas planas. Os escorregamentos não acontecem nas baixadas, onde as inundações é que são frequentes. No entanto, as margens dos rios precisam ser "preservadas" a todo custo, seja na serra ou nas terras baixas.! Ou vamos continuar a encher os vales com as nossas lágrimas, que podem ser tantas que não haverá necessidade nem mesmo que o céu desabe sobre todos nós.

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